Apoiar mercados territoriais e ampliar compras públicas da agricultura familiar: caminhos para combater à fome

Na próxima sexta (17), a Rede Ater Nordeste de Agroecologia apresenta pesquisa inédita que reforça esses caminhos para superar a fome e a pobreza, ao mesmo tempo em que enfrenta os efeitos das mudanças climáticas no semiárido brasileiro.

Quando o Brasil se assusta com o aumento exponencial de pessoas em situação de insegurança alimentar que, para mais de 33 milhões de pessoas em nosso país significa fome, gestores públicos e sociedade civil organizada do Nordeste abrem espaço para discutir um tema que pode parecer distante dessa drástica situação social, mas está completamente imbricado: o estímulo à produção de alimentos sem agrotóxico pela agricultura familiar através do apoio aos mercados territoriais e da compra pública de alimentos.

“O enfrentamento da fome necessita de soluções emergenciais de caráter estruturante”, defende Paulo Petersen, da AS-PTA e do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Paulo diz convicto que não existirá efetivo enfrentamento da fome se ele não for conjugado com o enfrentamento de outras questões associadas. “Medidas emergenciais, se mal orientadas, poderão reforçar os problemas sociais e ambientais do Brasil”, assegura. Entre esses problemas estão os de saúde pública como a desnutrição e a obesidade, e a inflação nos alimentos básicos, como acontece desde 2020.

“A gente necessita desconstruir a ideia dominante de que o problema da fome no Brasil é só de acesso ao alimento. Não adianta as pessoas terem recursos e comprarem alimentos ultraprocessados nos supermercados. Ou terem dinheiro vindo do auxílio emergencial e não poderem comprar arroz porque o preço do produto disparou. Quando a população mais vulnerável acessou os R$ 600 do auxílio emergencial, houve aumento do preço do arroz, porque não temos mais estoques públicos e porque a produção está se concentrando no Sul do Brasil. Regiões tradicionais de produção do arroz estão sendo tomadas por monoculturas para produção de commodities”, enfatiza. 

“A gente precisa de uma alimentação diversificada e acessível, fresca e comercializada localmente”, aponta. E é aí que o debate da fome se encontra com o debate que será feito nos cinco dias da 1ª Feira Nordestina da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Fenafes), que acontece de 15 a 19 de junho, no Centro de Convenções de Natal/RN.

Na centralidade do evento, os mecanismos já existentes para a agricultura familiar vender sua produção diversificada. Como construir políticas públicas que estimulem a produção de alimentos saudáveis, frescos e diversos e como fazê-los chegar à população em geral?

“Mercados territoriais têm a ver com comida sem agrotóxicos para o povo, renda para a agricultura familiar, convivência com o Semiárido e adaptação às mudanças climáticas”, diz uma peça de divulgação que a Rede Ater Nordeste de Agroecologia preparou para comunicar as ideias-força associadas a esse tipo de mercado.

“Se o Estado não intervir na cadeia de abastecimento de alimentos, fomentando programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e os mercados territoriais, a agroecologia vai se restringir a um nicho de mercado. Para oferecer soluções às crises estruturais do país, não bastam políticas públicas de fomento à produção”, comenta Paulo, acrescentando: “Com relação ao combate à fome, o Estado não pode entregar ao mercado a solução. Esse é o pensamento liberal: mercado acima de tudo. Só que o mercado, esse ente abstrato, é controlado por um punhado de empresas que têm como único objetivo a maximização de seus lucros no curto prazo.”

Mas, afinal, o que são os mercados territoriais? De forma geral, são espaços de comercialização de alimentos saudáveis da agricultura familiar e que são geridos pelas organizações das famílias agricultoras e onde os consumidores têm um papel ativo.

Para saber mais sobre os mercados territoriais e a força social que mantém as iniciativas que existem hoje, a Rede Ater Nordeste de Agroecologia vai promover um seminário para apresentar um estudo que investigou os efeitos dos mercados territoriais na vida e na economia das famílias agricultoras.

Os resultados vão ser apresentados, em primeira mão, no seminário Reinvenção dos mercados: alimento saudável da agricultura familiar no Semiárido que vai acontecer no dia 17 de junho, das 14h às 16h, como parte da programação da Fenafes.

Vale salientar que a fome do Brasil, segundo  o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil se faz presente de forma marcante entre as famílias que vivem no campo e deveriam ter apoio de políticas públicas para produzir seu próprio alimento. Em todo o Brasil, 6 em cada 10 famílias rurais sofrem algum tipo de restrição alimentar. E quase 2 famílias em 10 passam fome.

Sobre o estudo – Nos anos de 2020 e 2021, a Rede ATER Nordeste de Agroecologia, uma articulação de organizações da sociedade civil que se dedicam a assessorar famílias agricultoras do Semiárido, fez um estudo com o objetivo de identificar e analisar as mudanças na vida das famílias agricultoras quando estas estão inseridas em circuitos de venda por meio de mercados institucionais ou territoriais.

O estudo foi realizado em seis estados nordestinos – Bahia, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará – e em 12 territórios do Semiárido. Foram analisados 25 agroecossistemas que fazem parte de redes de agroecologia e estão integrados a diversas iniciativas de mercados territoriais.

Com os 25 agroecossistemas foram aplicadas várias camadas de estudo. Uma delas, aplicada à totalidade das propriedades, foi para investigar as mudanças qualitativas.

E, em 19 agroecossistemas, foram sistematizados dados quantitativos: como custos de produção e formação da renda com as diversas fontes – agrícola, sociais (provenientes de aposentadorias e outras políticas sociais) e de outras atividades.

Em sete propriedades, destacadas deste universo de 19, foi feita uma análise mais refinada. Foi analisada a economia desses agroecossistemas em dois cenários. No cenário real, que reflete a inserção deles nos mercados. E o cenário simulado que é a situação dos agroecossistemas caso não estivessem integrados ao mercado territorial. 

Para a obtenção desses diversos ‘retratos’, a pesquisa foi desenvolvida a partir do método Lume, desenvolvido pela AS-PTA. O Lume considera dimensões que em geral são invisibilizadas em metodologias convencionais.

A exemplo da renda não monetária que é a produção para autoconsumo e para doações na comunidade; e o estoque, que é riqueza produzida no ano agrícola que não foi nem vendida nem consumida no período analisado.

“Geralmente, esses dados não são contemplados em pesquisas convencionais que buscam apenas identificar a renda monetária do empreendimento. Muitas vezes, estudos econômicos nem mesmo contemplam a diversidade comercializada pela agricultura familiar, só olham para um ou dois produtos”, comenta Denis Monteiro, assessor técnico da AS-PTA.

Segundo Denis, por meio desse estudo, foi possível identificar como os custos de produção dos agroecossistemas manejados segundo os princípios da agroecologia são baixos em relação à renda bruta. “Em sistemas de produção especializados ligados às cadeias do agronegócio, com alto consumo de fertilizantes, agrotóxicos, sementes e ração para os animais, os custos produtivos em geral são muito altos. Esses sistemas até movimentam muito dinheiro, mas grande parte dessa renda fica com quem vende os insumos e com os atravessadores. Às vezes, os custos de produção chegam a 80% da renda bruta, e tem anos que o agricultor fica no prejuízo, porque os custos superam o que entra de dinheiro. 

No estudo da Rede ATER NE, na média de 19 agroecossistemas, os custos de produção foram de 29% da renda bruta.

Através do método Lume, também é possível visibilizar dimensões qualitativas, como perceber o quanto a família desenvolveu capacidades que a tornam mais preparada para se manter produtiva, mesmo frente às perturbações de várias ordens: climáticas, sanitárias e políticas (desmonte de políticas públicas de combate à fome e  de fortalecimento da agricultura familiar, por exemplo).

Uma dessas capacidades é a autonomia do agroecossistema em relação aos insumos externos. O que se percebe é que, com a integração às redes de agroecologia, os agroecossistemas estão menos dependentes de compras de sementes, ração e água, porque conseguiram produzir e estocar por conta própria com o apoio de políticas públicas com o Programa Uma Terra e Duas Águas e políticas de Assistência Técnica e Extensão Rural.

Outra dimensão qualitativa investigada pela pesquisa Lume é a transformação das relações de poder entre homens e mulheres, adultos e jovens da família. Outra temática investigada no Lume é a integração das famílias agricultoras em espaços organizativos como sindicatos, associações das comunidades rurais e conselhos.

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