A invasão das terras brasileiras, o roubo da cultura, dos modos de vida, das tradições, dos povos. Destruição em nome do desenvolvimento e da valorização do capital e do poder. Vivenciamos esse cenário há 524 anos, desde quando os portugueses chegaram em terras indígenas e negaram toda a história que aqui existia em prol da exploração, escravizando e matando as pessoas; “matavam” até mesmo em vida, quando obrigavam a esquecer suas origens, por exemplo.
E a história continua se repetindo, com outras roupagens, mas com os mesmos princípios e objetivos. No Nordeste, por exemplo, o avanço dos grandes empreendimentos, como usinas eólicas (900), usinas solares (827) e linhas de transmissão (até março de 2024, o Nordeste tinha quase 14 mil km de novas linhas de transmissão e 13 novas subestações).
Assim como o rei de Portugal implantou as sesmarias no Brasil, sistema no qual os lotes de terra eram entregues aos “amigos da coroa”, com objetivo de cultivar e aumentar a produção agrícola, como se não existisse ninguém naquelas terras. Atualmente, os grandes empreendimentos seguem a mesma “cartilha”; invadem as comunidades, enganam os/as moradores/as com falsas promessas financeiras e com o discurso do desenvolvimento.
Mas, perguntamos: desenvolvimento para quem?
Ameaçar comunidades tradicionais, o modo de viver, a fauna, a flora, e deixar como “presente” para as famílias diversas doenças como depressão, insônia, surdez, dentre outras. Isso se configura como desenvolvimento? Não! É apenas mais uma reprodução da colonização e da escravidão, que rouba a identidade e a cultura das pessoas.
Diante das diversas ameaças aos territórios, fazer nada, não pode ser uma opção, é preciso lutar, pois enquanto as comunidades rurais não tiverem seus direitos garantidos, ainda estaremos vivendo na escravidão. Por isso, os grupos de resistência e de mobilização que já tivemos e, felizmente, ainda temos na história do nosso país são fundamentais para buscar a garantia dos direitos básicos do povo.
Essa disputa perpassa por vários âmbitos, inclusive alguns meios de comunicação, que por muitas vezes contribuíram para desarticular, criminalizar e enfraquecer as lutas populares pelo direito do acesso à terra, por exemplo, com manchetes sensacionalistas que distorcem a realidade em prol daqueles que têm poder. O que acontece quando veículos de comunicação tendenciosos (defendendo interesses dos seus donos) divulgam notícias sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tratando as ações do movimento como vandalismo, baderna e invasão.
Esquecem de mencionar que o MST, por exemplo, ocupa somente terras que não estão exercendo a sua função social, como descrito no artigo 186 da Constituição Federal de 1988. A qual dispõe que a terra deve ser utilizada de forma racional, com utilização adequada dos bens naturais e preservação do meio ambiente; além da necessidade do cumprimento das leis trabalhistas e promoção do bem estar dos proprietários e dos/as trabalhadores/as.
Assim, quando as terras são devolutas, ou seja, terras públicas que não têm destinação ou uso pelo poder público, podem ser áreas remanescentes de sesmarias que não foram colonizadas e que foram transferidas para o domínio do Estado em 1891; portanto, não cumprem a sua função social. Por isso, elas podem ser ocupadas de modo a fazer se cumprir esse objetivo. No entanto, quando a luta é de interesse social e popular, essas leis são ignoradas.
Além disso, manchetes como “Bahia lidera produção de energia eólica”, “Energia eólica no Brasil é relevante e tem potencial de crescimento”, “Brasil fica em 6º lugar na geração de energia solar mundial”, “Brasil termina 2020 com mais de 6 mil km novos em linhas de transmissão”, entre tantas outras, fazem brilhar os olhos do capital, dos empresários e do “desenvolvimento”. Sem levar em consideração todo desastre ambiental e social que esse modelo de “progresso” ocasiona.
A agricultora e bacharel em Agroecologia, Nzinga Cavalcante, de Tracunhaém, no Pernambuco, é uma das atingidas pelas linhas de transmissão. Ela conta alguns dos impactos causados ao meio ambiente e à saúde das pessoas. “A fauna e a flora estão diminuindo, os solos ficando inférteis, as águas secando. Além de um som extremamente alto, um zumbido (…) Em relação à saúde dos povos, estão começando a ficar doentes, com depressão, pressão alta, diabetes, problemas renais, problemas de pele, esquecimento, além das doenças de ossos, artrite, artrose, osteoporose, por conta das linhas de transmissão que soltam radiação”.
Nesse sentido, a integrante da organização AS-PTA, que assessora o Pólo da Borborema, na Paraíba, Adriana Galvão, reforça: “A gente está numa luta contra a chegada dos grandes empreendimentos de produção de energia. Nós somos a favor das energias renováveis, mas não nesses megaprojetos, como chegam nas comunidades, nos nossos territórios. São inúmeros problemas desses grandes parques, desde a incompatibilidade da agricultura familiar com a produção de energia; mas, sobretudo, os problemas causados para as famílias. Tanto o barulho audível, quanto o barulho não audível tem causado muitos impactos na saúde das mulheres, desde problemas de circulação, de coração, mas, sobretudo, no cargo da saúde mental, ansiedade, insônia, depressão, e além disso os muitos aspectos associados à natureza do local”.
Invasão dos empreendimentos energéticos no território do Sertão do São Francisco
Os municípios de Sobradinho, Casa Nova, Sento Sé, Remanso, Pilão Arcado no Território de Identidade Sertão do São Francisco já foram alvo dos grandes empreendimentos, com a construção da hidrelétrica de Sobradinho, que retirou de suas casas, na década tal 1970, mais de 72 mil pessoas. Histórias que foram submersas pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), empresa que não garantiu ao menos o direito à energia elétrica a todas as famílias que optaram por ficar nos municípios redesenhados pela obra. Atualmente ainda existem comunidades rurais próximas à barragem que não possuem energia elétrica.
Agora, outros empreendimentos energéticos: eólicas, usinas solares e linhas de transmissão invadem esses e outros municípios, mais uma vez, em nome do desenvolvimento. A comunidade tradicional de Fundo de Pasto Canoa, na região de Massaroca, em Juazeiro-BA, também está sendo ameaçada pela implantação de linhas de transmissão na comunidade. Algumas famílias já receberam “visitas” de sondagem de pessoas querendo informações sobre a localidade, falando dos falsos benefícios que este tipo de empreendimento pode trazer para a região e ofertando valores financeiros.
Diante dessa ameaça, o projeto “Levanta-te Mulher e Caminha” reúne 18 mulheres de 8 Comunidades Tradicionais de Fundo de Pasto da região de Massaroca, realizado pela Congregação Irmãs da Caridade do Bom Pastor, com apoio da Fundación Internacional del Buen Pastor América Latina. Com a parceria do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), está realizando formações voltadas à discussão da Terra e Território, com o objetivo de sensibilizar as mulheres e suas famílias sobre a necessidade de defender o seu local, as suas raízes. Essas comunidades são defensoras da Caatinga em pé, da preservação deste bioma exclusivamente brasileiro, constantemente ameaçado.
A maioria das mulheres que participam do projeto são lideranças comunitárias. Dessa forma, a partir das formações é possível sensibilizar sobre essa problemática que chega às comunidades, trazendo ameaças, tensões e o sentimento de insegurança, explica a Irmã Neide, da Congregação das Irmãs do Bom Pastor.
Assim, a partir das discussões realizadas nas formações, a agricultora Arcilia Lino, mais conhecida como Jacira, preocupada com o futuro da comunidade, destaca a importância desses momentos para sensibilizar as famílias sobre como defender a sua terra. “Era muito importante que outras pessoas estivessem aqui. E que vocês do Irpaa, tivessem a oportunidade de vir aqui para nossas reuniões mais vezes, para explicar para as pessoas a importância dessa luta”, destaca.
Essas invasões e destruição do meio ambiente e dos modos de vida dos povos do Semiárido, se repetem por todo o Nordeste, que é tido como uma região de muito potencial para a geração de energia “limpa” no Brasil. O modo como os grandes empreendimentos chegam e se apropriam dos nossos territórios é um problema que deve unir os povos, movimentos e organizações na luta pelo simples direito de viver e existir com suas tradições, culturas e identidades. Nenhum modelo de desenvolvimento centralizado, que degrada a nossa casa comum, deve estar acima dos povos, ainda que cheguem apoiados ou com a chancela do Estado.
Texto: Lorena Simas
Edição: Vagner Gonçalves
Eixo Educação e Comunicação do Irpaa