São elas que assumem o protagonismo, seja no campo, nas cidades, nas florestas, enfim, em todos os lugares. São elas que estão produzindo alimentos saudáveis para as mesas brasileiras. Chegou a hora de reconhecê-las, de tirá-las da sombra da invisibilidade. Elas estão aqui, fortes, determinadas, prontas para serem vistas. Basta olhar com atenção e se encantar com a resiliência e a bravura dessas mulheres.
A comunidade Vila Rica, em Quixadá (CE), é uma terra construída com muito suor, e foi graças ao trabalho de mulheres valentes que floresceu esse belo lugar. Hoje, em meio a 104 famílias que chamam essa terra de lar, brilha a força de 80 mulheres determinadas. Para elas, seus quintais produtivos são muito mais do que meros espaços – são símbolos de resistência e empoderamento.
É importante ressaltar que cerca de 45% de toda a produção agrícola do Brasil é conduzida por mãos femininas. De acordo com dados da Empresa Brasileira de Pesquisa em Agropecuária (Embrapa), divulgados em 2020, 19% das propriedades rurais são lideradas por mulheres, o que equivale a 947 mil estabelecimentos rurais, e se for considerada a agricultura familiar esse número sobe ainda mais. São essas mulheres, que mostram ao mundo o poder transformador e a contribuição inestimável que elas oferecem para o Brasil.
Sarah Luíza, militante de movimentos feministas agroecológicos, destaca que esses números refletem o crescente reconhecimento das mulheres como profissionais e não apenas como auxiliares. Elas atuam em diversas áreas, sendo verdadeiras protagonistas. Sarah ressalta que o trabalho realizado pelas mulheres no campo não se resume a uma simples ajuda aos homens.
“O que elas fazem não é só ajuda, mas o que elas fazem no campo é trabalho, e é um trabalho fundamental para sustentabilidade da vida e para a produção de alimentos saudáveis, tanto para o autoconsumo quanto para a comercialização, então tem uma contribuição econômica, social e política fundamental. E por isso, por elas mesmo se reconhecerem cada dia mais como agricultoras, hoje os números mostram isso de forma mais explícita“, contextualiza.
E é nessa terrinha chamada Vila Rica que se encontra a destemida Alcy, uma agricultora de 53 anos. Maria Alcy Pereira dos Santos é uma agricultora agroecológica no coração do semiárido brasileiro, e ostenta esse título com orgulho. Desde sua infância, ela tem chamado essa comunidade rural de lar, dizendo com convicção: “Aqui é onde pertenço, não consigo me imaginar em outro lugar“. Nascida em uma família numerosa, com 12 filhas e 9 filhos, Alcy conheceu desde cedo o peso da divisão sexual do trabalho. Ela assumiu junto com suas irmãs a responsabilidade pelos cuidados da casa e dos irmãos, além de ajudar seus pais com a agricultura, pois todos sempre trabalharam com a terra. Para ela, ser agricultora é uma forma de reconhecer seu próprio valor. Mesmo diante das dificuldades impostas pela vida, Alcy sempre encontrou formas de se reinventar e de desafiar os padrões sociais.
Em 2019, tudo mudou para Alcy, quando ela teve a oportunidade de conhecer o Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador e à Trabalhadora – CETRA. Através de intercâmbios e compartilhamento de experiências, Alcy começou a enxergar seus 22 hectares de terra sob uma nova perspectiva. O que antes era um espaço desorganizado e contaminado por agrotóxicos, se transformou em um lugar colorido, vibrante e saudável. Além disso, ela conquistou políticas públicas, como cisternas, telas de arame, fogão ecológico e biodigestor, potencializando a produção agroecológica, por meio de sua incrível capacidade de se auto organizar através dos Fundos Rotativos Solidários – um sistema econômico comunitário e solidário.
“Essa terra que possuo hoje significa tudo para mim. É minha segurança, meu sustento e o alimento para minha família. Eu colho o que planto e troco com outras mulheres da comunidade“, afirma Alcy com brilho nos olhos. Seu quintal se tornou um agroecossistema essencial no seio de sua família, gerando riqueza, segurança alimentar e bem-estar. Além disso, ela se tornou uma participante ativa da Feira Agroecológica e Solidária de Fortaleza e de Quixadá, comercializando seus produtos com orgulho e contribuindo para a construção de uma comunidade mais sustentável.
Para a professora Gema Galgani, socióloga rural e especialista na área de mulheres e agroecologia, nas últimas quatro décadas ocorreu um crescimento de estudos, de pesquisas e de escritos sobre a presença ativa da mulher na agricultura e na pequena pecuária, contribuindo para mudar o quadro de invisibilidade, de negação, de desconhecimento da atuação diária do trabalho da mulher na agricultura, mas, mesmo com tantos progressos, ainda há muito a melhorar.
“Como ainda vivemos numa sociedade patriarcal e homofóbica, a luta das mulheres se dá em todas as posições, mesmo aquelas que parecem estar no interior da mesma classe – a classe trabalhadora. E até num espaço que parece emancipado(r), as mulheres só conseguem visibilidade e reconhecimento social e político se forem à luta afirmando sua presença e atuação histórica e cotidiana”, pontua.
“As mulheres têm buscado se organizar em sindicatos, associações, cooperativas, grupos de trabalho para afirmarem seu protagonismo no campo rural e têm desenvolvido lutas por direitos e políticas públicas que reconheçam suas especificidades e necessidades. Elas se inserem na formação e no debate de questões estruturais como o patriarcado, o racismo, sua condição de classe social, para a defesa de seus territórios, de seus corpos, de suas vidas, e a inclusão de suas reivindicações junto ao Estado. Estudos estatísticos de instituições governamentais têm sido provocadas a inserirem marcadores de gênero, de classe, de raça, para considerarem e analisarem a presença das mulheres trabalhadoras rurais nos espaços produtivos, econômicos, organizativos, de decisão e culturais”, acrescenta Gema.
Com 44 anos de história, Eleni Alves da Silva, conhecida como Boneca, também vive na comunidade Vila Rica desde que nasceu. Sempre trabalhou na agricultura, ajudando sua família, inicialmente ajudando seus pais e seus quatro irmãos, mas hoje fala com veemência que é uma mulher independente. Boneca, desde seu nascimento, ajuda na produção de alimentos saudáveis e de qualidade para a nutrição do povo brasileiro.
Como uma mulher rural no Brasil, Boneca é mais um símbolo representativo dos desafios enfrentados por esse tipo de personagem da nossa história. Assim como outras mulheres do campo, Boneca desempenha diversos papéis em sua comunidade e na sociedade como um todo. “Hoje, sou uma mulher independente, tenho minha casa própria, moro com meus dois filhos. Sou mãe solteira, sou pai, sou educadora, sou agricultora”, define-se.
E segue seu trabalho como representante da produção agroecológica, participando, assim como Alcy, da Feira da Agricultura Familiar em Quixadá e também da Feira do Espaço Agroecológico do Instituto Antônio Conselheiro, em Quixeramobim. De seus pequenos canteiros para produção de verduras e de sua pequena criação de galinhas, Boneca produz o que vende nessas feiras. Dali, tiram seu sustento. Ainda consegue se dedicar a um gosto pessoal: as plantas ornamentais cuidadas com tanto carinho pela agricultora.
Ela praticamente não têm terra própria para seu trabalho, e dedica-se também à venda de dindins, bombons e outras guloseimas para completar a renda da casa e conseguir os proventos para sua filha Nicolle, de 10 anos, e seu filho Vinícius, de 15 anos, visto que ambos só estudam. Recentemente, a agricultora foi contemplada com o fogão ecológico, o qual a ajudou muito na produção de seus alimentos. Boneca percebe as dificuldades encontradas no campo, com menos políticas públicas, com menos visibilidade e, portanto, menos alcance político, mas continua em sua missão. As mulheres do campo não se deixam abalar. Geralmente, elas não têm esse direito. “É um trabalho difícil, pesado para uma mulher, mas não deixa de ser um desafio incentivador para que eu continue na luta”, afirma.
Método Lume
Tanto Alcy quanto Eleni participaram do estudo LUME, um método criado pela AS-PTA com o objetivo de dar visibilidade às relações econômicas, ecológicas e políticas que singularizam os modos de produção e de vida da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais, as quais têm sido historicamente ocultadas ou descaracterizadas pela teoria econômica convencional. O método busca evidenciar o passado, presente e futuro daquela família na perspectiva agroecológica, a partir de suas realidades, contribuindo para que construam novos caminhos para o desenvolvimento de seus agroecossistemas.
“Esse estudo foi muito importante para mim. Quando participei, pude desenhar o mapa da minha área, identificando seu tamanho e destacando todos os subsistemas que possuo. Além disso, ao contar minha história, pude relembrar momentos significativos, tanto os meus quanto os da comunidade, que contribuíram para o que tenho hoje. Isso foi muito enriquecedor para mim.”
Esse olhar de participação das mulheres no campo foi aprimorado pelo estudo familiar com o método LUME, possibilitando identificar muitos elementos que até então não eram percebidos por elas. “Vi o quanto sou empoderada, né!? Porque há coisas que só conseguimos perceber ao compartilhar com alguém. Também notei que há várias áreas a melhorar para nos fortalecermos mais como família, pois é um conjunto. Um depende do outro”, destaca Eleni.
“Essas mulheres sempre estiveram no campo, nas florestas, nas águas… Trabalhando, produzindo, construindo conhecimento, mas o que a gente tem cada vez mais, como resultado do processo de organização, é uma ampliação da visibilidade, primeiro do auto reconhecimento da sua contribuição e, como consequência, o maior reconhecimento da sociedade da contribuição do trabalho das mulheres do campo, da floresta, das águas, e também para a gente nessa produção, nessa construção de uma forma de viver e de produzir, que é a agroecologia“, finaliza Sarah.
As mulheres agricultoras merecem ser celebradas e reconhecidas todos os dias, não apenas em uma data específica como o dia 15 de outubro, estabelecido pela ONU para destacar o papel feminino no campo. Elas são verdadeiras heroínas, assim como Alcy e Boneca, que transcendem o papel de espectadoras e se tornam protagonistas não apenas de suas próprias histórias, mas também de inúmeras comunidades e organizações que impulsionam transformações econômicas, sociais e ambientais no meio rural.
Por Daiana Almeida – CETRA